Não adianta fazer cirurgia bariátrica se não tratar a compulsão alimentar
Não é difícil encontrar relatos de superação de pessoas que mudaram de vida após fazer a cirurgia bariátrica. Gente que, a partir do procedimento, eliminou 40, 60, 80 quilos… ou até mais. Os casos que se destacam na mídia geralmente mostram a realização de algumas das coisas mais desejadas por muitas pessoas com obesidade, como uma melhor qualidade de vida e o resgate da autoestima.
As mídias sociais mostram somente os êxitos, afinal, o que mais buscamos por lá, senão inspiração? Mas a cirurgia bariátrica é algo muito sério e não deveria ser banalizada ou vendida como um "milagre".
O marketing do emagrecimento gerou uma certa glamourização em torno do procedimento e faz muita gente se perder nessa miragem. Adeus, dietas! Adeus medo de engordar! Muitos acreditam que é realmente assim, que a cirurgia resolve absolutamente tudo.
Oferecida gratuitamente pelo SUS, a intervenção realmente salva vidas. Mas ainda falta muita informação sobre os riscos, consequências e mudanças metabólicas geradas por ela. Poucos sabem que a bariátrica é um verdadeiro casamento, para o resto da vida, com suplementos alimentares e médicos –o que exige uma intensa disciplina.
Mais escassa ainda é a conscientização sobre o aspecto comportamental, que para mim é um dos maiores problemas dentro desse assunto.
Cirurgia não transforma a personalidade
Na medicina, cada caso é um caso, e realmente a bariátrica é a única opção para muitos pacientes. Mas é cada vez mais frequente o número de pessoas com obesidade que partem para a cirurgia antes mesmo de fazer uma reorganização comportamental ou até mesmo tratar possíveis distúrbios ligados ao ato de comer, como, por exemplo, a compulsão alimentar.
Vejo muitas pessoas com um comer transtornado e/ou um transtorno alimentar sendo operadas e isso é um grande problema de saúde pública. Resultado? Sem mudar o comportamento não adianta fazer cirurgia, pois elas têm um risco alto de voltar a engordar e sentirem-se muito fracassadas. E são duplamente julgadas: por si mesmas e pelos que as cercam.
Um paciente me disse certa vez que ouviu a seguinte frase: "Como você conseguiu engordar, mesmo sem estômago?". Imagine o estrago que esse tipo de discriminação faz na mente de quem se submeteu à uma intervenção invasiva e que tinha nela sua última esperança.
Compulsão pós-cirúrgica
Trabalho em um grupo especializado em transtornos alimentares focado em pacientes que fizeram a cirurgia bariátrica, no Ambulim, Faculdade de Medicina da USP, no Hospital das Clínicas. Vou contar como esse grupo nasceu.
A princípio, abordamos pessoas que estavam na fila de espera para fazer a cirurgia bariátrica, oferecendo tratamento gratuito para o tratamento da compulsão alimentar. Diminuindo a compulsão, o paciente passaria a comer menos e tenderia a ter uma boa evolução do quadro pós-cirúrgico ou até, talvez, nem precisaria fazer a cirurgia. E o melhor: diminuiria em muito o risco de voltar a engordar, porque teria melhorado sua relação com a comida.
O número de interessados foi decepcionante: zero. Isso mesmo, ninguém se interessou por tratar o comportamento, na esperança quase mágica que a cirurgia ia resolver tudo e também com medo de perder a posição na fila e a chance de fazer a cirurgia. Repito: o tratamento era gratuito.
Então, mudamos o foco: passamos a receber pacientes que procuravam tratar a compulsão após a cirurgia e o reganho de peso. Hoje, temos lista de espera. Deu para visualizar o cenário?
O glamour em torno dos casos de sucesso não corresponde à realidade de muitas outras pessoas que sofrem os efeitos comportamentais deste procedimento.
As pessoas que voltam a engordar enfrentam muito preconceito e sentem uma enorme angústia por não saber lidar com esse novo corpo. O cérebro continua pedindo comida, muitas vezes de forma compulsiva. Mas o organismo não dá conta mais de receber determinados alimentos ou grandes porções de comida.
Esse mix de sentimentos é uma porta de entrada para transtornos alimentares e um combustível a mais para quem já sofria com eles. A compulsão é o mais comum.
Rever a relação com a comida é uma prioridade
Para mim, compulsão alimentar deveria ser critério de exclusão da cirurgia alimentar. Mas, infelizmente, não é. Muitos estudos, no entanto, indicam que a cirurgia pode melhorar ou até curar este transtorno.
Só que geralmente são análises de curto prazo, que avaliam somente o período que chamamos de "lua de mel" –ou seja, os primeiros seis meses. Passado o estado de bem-estar e até euforia causado pela perda de quilos, volta a relação conturbada com a comida.
Por isso, deixo aqui um alerta importante para todas as pessoas que estão pensando em fazer a cirurgia ou já fizeram e estão enfrentando dificuldades de adaptação: não deixem de lado o seu estado emocional e melhore a sua relação com a comida. Nunca é tarde demais.
Para ter uma boa relação com a comida é preciso deixar de lado antigas crenças e confiar no seu corpo. Mudar hábitos pode ser um trabalho demorado e visto como árduo, mas é para a vida toda!
Voltar a comer melhor e não menos, com prazer, sem se culpar e sem se preocupar com o julgamento alheio pode trazer um ganho de bem-estar e equilíbrio sem fazer a guerra contra você e a comida…
Por isso, avalie suas opções com cuidado, lembrando que não existe milagre, e cuide da sua mente. E bon appétit!
Sophie Deram
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