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Blog da Sophie Deram

Transtornos alimentares também afetam os homens

Sophie Deram

31/07/2019 04h00

Crédito: iStock

Quando se fala em transtorno alimentar quase que automaticamente pensamos no sofrimento das meninas e mulheres com a anorexia e a bulimia nervosas.

Essas doenças psiquiátricas estão catalogadas no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM) desde sua terceira edição, em 1980. Esse instrumento é de suma importância no diagnóstico de problemas de saúde mental, entre eles os transtornos alimentares. De acordo com o DSM-V, na sua última edição de maio 2013, 0,4% e de 1 a 1,5% de mulheres jovens sofrem com anorexia e bulimia, respectivamente. O documento, porém, não tem nenhuma informação sobre a prevalência no sexo masculino, apenas estima que para cada 10 mulheres existe 1 homem com algum desses dois problemas.

A escassez de dados contribui para o mito e o estigma de que os transtornos alimentares afetam apenas as mulheres, quando na verdade os homens podem estar sendo subdiagnosticados, tratados de forma inadequada e sentindo-se inibidos a procurar ajuda. De fato, evidências mais recentes sugerem que este número esteja subestimado, havendo 4 mulheres para 1 homem com transtornos alimentares.

Uma revisão sistematizada publicada em abril de 2019 observou um aumento assustador da incidência e prevalência de transtornos alimentares em ambos os sexos nos últimos anos, passando de 3,5% entre o período de 2000-2006 para o dobro 7,8% no período avaliado de 2013-2018.

Nossa obsessão para emagrecer está tendo um preço salgado na saúde mental da população em geral e principalmente dos nossos jovens.

Particularidades dos transtornos alimentares em homens e mulheres

Os transtornos alimentares atingem com igual severidade os homens e as mulheres, independentemente do sexo, idade e condição social. No entanto, alguns estudos defendem que eles podem se manifestar nos diferentes sexos com algumas particularidades, que precisam ser consideradas no diagnóstico e no tratamento.

Uma dessas especificidades é a insatisfação com a imagem corporal. Ela atinge tanto homens quanto mulheres. Porém, os estudos sugerem uma diferença na busca do ideal corporal. Observamos que o maior número de homens quer ganhar músculos, enquanto que a maioria das mulheres deseja um corpo mais magro. Isso mostra que o comportamento alimentar de uma parcela dos homens pode estar mais voltado para a obsessão por um corpo musculoso, e não para a magreza.

Uma pesquisa estadunidense, publicada em maio deste ano, realizada a partir de dados da National Longitudinal Study of Adolescent to Adult Health (Add Health) com jovens que tinham entre 11 e 18 anos em 1994 e 1995 e entre 18 a 24 anos em 2001 e 2002, mostrou que, dos 14.891 participantes, um número maior de homens jovens (27,5%), em relação às mulheres jovens (4,9%), declararam tentar ganhar peso. 21,9% deles e 4,5% delas relataram um comportamento alimentar transtornado orientado para a muscularidade. Você já ouviu falar nesse termo?

O comportamento alimentar transtornado orientado para a muscularidade (ou comer transtornado orientado para a muscularidade) é uma tradução para muscularity-oriented disordered eating behaviors e diz respeito a uma série de comportamentos alimentares adotados na busca por um corpo musculoso ideal, seja pelo aumento do volume muscular ou da redução da gordura corporal, que dá visibilidade à musculatura. Para atingir esse ideal o indivíduo faz diversas mudanças na sua alimentação, como por exemplo: comer alimentos proteicos em excesso, restringir a ingestão de carboidratos e consumir suplementos alimentares sem necessidade. Além disso, também é comum a prática excessiva de exercícios físicos e uso de anabolizantes.

Outra prática corriqueira entre as pessoas com comportamento alimentar transtornado orientado para a muscularidade é a inserção de "cheat meals", aqui no Brasil também é chamada de "dia do lixo". As "cheat meals", na verdade, são refeições que permitem fugir da dieta, com liberdade para comer, exageradamente, alimentos calóricos e ricos em carboidratos, que são vistos como proibidos. Mesmo representando uma saída da dieta, esta refeição é planejada e geralmente realizada uma vez na semana. A intenção desta prática é "reativar o metabolismo" diante de uma alimentação tão restritiva, mas se parece bastante com os episódios de compulsão alimentar, podendo gerar sentimento de perda de controle em relação à alimentação, provocar comportamentos compensatórios e maior restrição alimentar.

Essa preocupação excessiva com o ganho muscular (ou hipertrofia) pode estar relacionada também ao desenvolvimento de dismorfia muscular, um subtipo do Transtorno Dismórfico Corporal. Nesse caso, a pessoa demonstra uma grande preocupação com sua estrutura corporal, percebendo-a insuficientemente musculosa, ainda que tenham uma aparência normal ou seja muito musculosa.

Na verdade, a dismorfia muscular e os transtornos alimentares estão intimamente ligados. A restrição alimentar, a preocupação com a imagem corporal e a prática compulsiva de exercícios físicos podem ser encontradas tanto indivíduos que sofrem com a dismorfia muscular quanto naquelas pessoas que sofrem com a bulimia ou anorexia nervosa, por exemplo.

Isso gera críticas por parte de alguns pesquisadores. Eles consideram que as características diagnósticas dos transtornos alimentares não levam em conta perturbações da imagem corporal e comportamentos de controle de peso mais comuns em homens. Nesse caso, homens com comportamentos alimentares transtornados e orientados para a muscularidade podem ser diagnosticados com dismorfia muscular, categorizada como Transtorno Obsessivo Compulsivo, reforçando a imagem de que os transtornos alimentares não são comuns em homens.

Ideal de magreza ou busca pela muscularidade: toda forma de sofrimento merece atenção e tratamento

Mesmo o estudo citado acima apresentando uma maioria de homens com comportamentos alimentares transtornados orientados para a musculosidade, não podemos esquecer da minoria de mulheres que apresentam a mesma condição (inclusive, acredito que isso seja crescente com a "fitinspiração"). O mesmo deve ser dito da parcela de pessoas, seja homens ou mulheres, que apresentam sintomas de transtornos alimentares típicos, voltados para a magreza e para a perda de peso.

Mulheres podem apresentar ideais de beleza direcionadas para a muscularidade, e os homens para a magreza, e vice-versa. Do mesmo modo os transtornos alimentares podem ter manifestações divergentes do tipicamente esperado, em ambos os sexos.

Os transtornos alimentares podem se manifestar de formas semelhantes entre homens e mulheres ou apresentar particularidades. O mais importante nesse caso é que qualquer sinal seja percebido como uma forma de sofrimento e tratado da melhor forma. Cada caso é um caso e deve ser avaliado com bastante acuidade. Os diagnósticos ajudam, mas não devem ser inflexíveis.

Se precisar, procure ajuda!

A conscientização sobre os transtornos alimentares é um aspecto crucial para avançar nesse campo. Homens e mulheres devem estar atentos a qualquer comportamento que possa afetar negativamente as suas vidas.

Nunca hesite em pedir ajuda! Os transtornos alimentares são extremamente complexos e precisamos de uma equipe especializada de profissionais para tratá-los, com psiquiatras, psicólogos e nutricionistas. Além disso, o apoio da família e dos amigos é um grande aliado nessa luta. Infelizmente, são poucos hoje em dia os profissionais de saúde que sabem identificar essas doenças. A tendência da maioria deles é focar somente no peso, correndo o risco de piorar o quadro de quem sofre de transtornos alimentares.

Além disso, atente-se para o comer transtornado. Ele envolve comportamentos alimentares disfuncionais e práticas não saudáveis para perder peso, controlar a comida, ou uma atenção exagerada à alimentação, tão comum hoje em dia, mas que não ocorre com frequência e gravidade a ponto de serem considerados e diagnosticados como um transtorno alimentar. Por isso, fica a minha dica de fazer as pazes com a comida e o corpo, comer melhor, colocando a saúde e o bem-estar em primeiro lugar!

Bon appétit!

Sophie Deram

Sobre a autora

Sophie Deram é uma nutricionista franco-brasileira, autora do best-seller “O Peso das Dietas”, palestrante, pesquisadora e doutora pela Faculdade de Medicina da USP (Universidade de São Paulo) no departamento de endocrinologia. Defende a importância do prazer de comer para a saúde e a ideia de comer melhor e não menos. Sophie não acredita nas dietas restritivas e no “terrorismo nutricional”. Desenvolve programas online para transformar a relação das pessoas com comida e ensina profissionais de saúde sobre nutrição que alia ciência e consciência.Leia mais no site da Sophie Deram: https://www.sophiederam.com/br/

Sobre o blog

Dicas, reflexões e estudos sobre a relação do nosso corpo com a comida, com foco em alcançar uma relação tranquila com os alimentos e, assim, obter um peso saudável. Esse é um espaço que passa longe dos modismos alimentares. Aqui promoveremos mudanças de hábitos que vão te ajudar a viver melhor. Acredito que o ser humano se nutre de alimentos e sentimentos.