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Blog da Sophie Deram

Esse ano, me deixe comer em paz, por favor

Sophie Deram

08/01/2020 04h00

Crédito: iStock

Comer é algo muito prazeroso. Infelizmente, em alguns momentos pode ser bem complicado e até desagradável. As pessoas andam muito neuróticas com a alimentação, vivemos um terrorismo nutricional e com tantas informações não sabemos mais o que comer, os alimentos acabam sendo rotulados em saudáveis e não saudáveis, ou em emagrecedores e engordativos, ou em bons ou ruins. Com toda essa neura, às vezes, uma simples refeição pode gerar muita ansiedade e um grande mal-estar. O que deveria ser um momento tranquilo e gostoso, apreciar uma boa comida e até divertido para aproveitar a presença de pessoas queridas, se transforma em uma oportunidade para fiscalizar o prato do outro como também de se policiar.

Os policiais (internos e externos) da alimentação

É muito provável que você já tenha passado por uma situação desse tipo, em que em que amigos ou familiares fazem comentários sobre a forma como você tem se alimentado. "Você não acha que já comeu demais?"; "não era você que estava de dieta?"; "come açúcar e depois reclama que não emagrece". A atitude daquele que resolve fiscalizar o que o outro está comendo assemelha-se a um policial, ou melhor, a um "policial alimentar". Até fiz um vídeo divertido de tanto meus pacientes reclamarem disso.

Mas esses policiais não estão apenas do lado de fora. Muitas vezes nos autopoliciamos. É como se possuíssemos dentro de nós um fiscal que está, a todo momento, avaliando as regras alimentares. Quando percebemos que elas não estão sendo cumpridas, sentimos culpa e um mal-estar. Isso lembra alguém?

Entenda o que está por trás da fiscalização da comida

Esses comentários que vêm de fora e os pensamentos involuntários que surgem internamente podem soar ofensivos e serem devastadores. Fazer comentários sobre o que as pessoas comem, como também sobre os seus corpos, é uma atitude invasiva e que não demonstra empatia, pois podemos estar tocando em algo muito íntimo do outro, sem nos colocarmos no seu lugar nem entender sua relação com a comida e com o corpo. O ato de comer é extremamente íntimo, não à toa dizem que "somos o que comemos". Tanto porque os alimentos que consumimos vão constituir o nosso corpo, como também pelo fato de que as nossas escolhas alimentares dizem muito sobre nós e correspondem à cultura, às emoções, compartamentos e a biologia de cada um de nós.

No entanto, nem sempre aquele que comenta o faz com má intenção. Ele também está imerso na mentalidade de dieta e num discurso midiático que a todo momento nos guia para as restrições alimentares e para a proibição do consumo de determinados alimentos (como aqueles de alta densidade energética e ricos em carboidratos e gorduras).

Essas determinações das melhores opções alimentares e do que se deve e não se deve comer também condiz com uma forte pressão social para emagrecer. A gordura, o açúcar e o sal, antes vistos apenas como ingredientes culinários, tornaram-se, em nossa sociedade, venenos e exagerar, um pecado. Cada vez mais tendemos a controlar e racionalizar a alimentação e com isso buscamos uma "alimentação perfeita", que na verdade não existe.

Essa visão reflete uma compreensão reducionista do que seja o ato de comer. A alimentação não é uma fórmula matemática e, portanto, ingerir quantidades adequadas de nutrientes e ter um gasto energético equivalente à ingestão calórica não são suficientes para termos saúde.

Comer é uma necessidade e também um ato prazeroso do qual ninguém deveria privar-se. É uma forma de estar junto dos outros e de demonstrarmos afeto. Muitas vezes cozinhamos ou presenteamos as pessoas queridas com comidas e bebidas e comer também pode simbolizar uma recompensa ou uma fuga para os nossos problemas, é o que chamamos de fome emocional.

Coma sem culpa e com prazer

Compreender o contexto que leva as pessoas a fiscalizarem o que os outros comem, como também a autofiscalização, é o primeiro passo para aprendermos a lidar com esse tipo de situação.
Essa fiscalização (interna e externa) está relacionada com uma culpa ao comer. Repetir um prato, por exemplo, pode ser motivo para sentir vergonha nesse contexto. Escutar os sinais que o nosso corpo envia para comunicar suas necessidades pode ser uma maneira de se livrar do sentimento de culpabilidade, estar de bem consigo mesmo e, como consequência, não dar muita bola para o que os outros dizem.

Um desses sinais diz respeito às percepções de fome e de saciedade. O nosso organismo necessita de energia e nutrientes para funcionar adequadamente. Quando o corpo precisa de comida ele utiliza a sensação de fome para comunicar essa necessidade. Do mesmo modo, quando o corpo está saciado, pois comeu o suficiente, ele envia sensações para indicar que já comemos o bastante. Hoje é muito comum que as pessoas não escutem o seu corpo, elas estão tão desconectadas que não sabem quando comer nem quando parar de comer, sendo extremamente importante reaprender a tomar consciência dos sinais de fome e saciedade e voltar a escutar corpo.

É importante autorizar-se a comer com prazer. Não basta nos sentirmos saciados, também é saudável nos sentirmos satisfeitos. Ou seja, comer o que realmente gostamos e que o nosso corpo pede. Não é saudável comer um alimento que promete diversos benefícios para a saúde se ele não agrada o nosso paladar. Evitar contar calorias e buscar comer de forma consciente, apreciando os alimentos e escutando a própria fome e vontade também é uma forma de desafiar nosso policial interno.

Além disso, nenhum alimento por si só é capaz de proporcionar saúde nem provocar emagrecimento, como também de arruinar nossa saúde e ser responsável pelo ganho de peso. Se por um lado, a mentalidade de dieta nos leva a consumir alimentos que não gostamos, por outro, essa repressão e censura com a comida também pode nos levar a um maior desejo pela comida e ao exagero constante. Perguntar-se se você realmente deseja comer determinado alimento ou se realmente precisa comer mais um pouco pode ajudar a você se permitir comer sem que isso provoque algum sentimento ruim. Sempre digo que podemos comer de tudo, mas não tudo. Permitir-se comer sem restrições de alimentos é um passo importante para a saúde e para fazer as pazes com a comida.

Por fim, lembre-se que a alimentação é uma questão pessoal. Cada um tem direito de escolher o que e o quanto comer. Só você pode ser responsável pelas suas escolhas alimentares e isso não diz respeito a mais ninguém. Entender isso é uma forma de nos blindarmos para os fiscais internos e externos da alimentação e representa um passo importante no processo de fazer as pazes com a comida e com o corpo.

Bon appétit!

Sophie Deram

Sobre a autora

Sophie Deram é uma nutricionista franco-brasileira, autora do best-seller “O Peso das Dietas”, palestrante, pesquisadora e doutora pela Faculdade de Medicina da USP (Universidade de São Paulo) no departamento de endocrinologia. Defende a importância do prazer de comer para a saúde e a ideia de comer melhor e não menos. Sophie não acredita nas dietas restritivas e no “terrorismo nutricional”. Desenvolve programas online para transformar a relação das pessoas com comida e ensina profissionais de saúde sobre nutrição que alia ciência e consciência.Leia mais no site da Sophie Deram: https://www.sophiederam.com/br/

Sobre o blog

Dicas, reflexões e estudos sobre a relação do nosso corpo com a comida, com foco em alcançar uma relação tranquila com os alimentos e, assim, obter um peso saudável. Esse é um espaço que passa longe dos modismos alimentares. Aqui promoveremos mudanças de hábitos que vão te ajudar a viver melhor. Acredito que o ser humano se nutre de alimentos e sentimentos.