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Blog da Sophie Deram

Por que cortar o glúten não te traz mais saúde

Sophie Deram

15/01/2020 04h00

Crédito: iStock

Facilmente você encontra por aí dicas e recomendações para "cortar" o glúten da alimentação. Celebridades, atletas e até profissionais de saúde mostram os benefícios ao se excluir essa proteína da alimentação. Mas será que uma alimentação livre de glúten realmente contribui para a nossa saúde?

Primeiramente, o que é o glúten?

O glúten é constituído por duas proteínas: a gliadina e a glutenina. Juntas, e em contato com a água, elas formam uma substância elástica de grande importância culinária. Essa elasticidade garante a textura adequada de massas e permite a retenção de gases produzidos durante o processo de fermentação, contribuindo, por exemplo, para o crescimento de bolos e pães.

O trigo e seus derivados têm grandes quantidades de glúten, mas essas proteínas também estão contidas em outros grãos: o centeio e a cevada, esta utilizada na produção da cerveja, bebida tão popular no Brasil.

Algumas pessoas necessitam retirar o glúten da alimentação, pois apresentam alguma das três condições de saúde a seguir:

  • Doença celíaca. É uma doença autoimune que se manifesta em pessoas com predisposição genética. Quando a gliadina do glúten entra em contato com as células do intestino delgado, ocorre uma reação de defesa do organismo, que provoca sintomas como: diarreia, estufamento, constipação, náuseas e vômitos.
  • Alergia ao trigo. É uma reação alérgica a proteínas do trigo. Além de sintomas gastrointestinais, pode haver irritação da pele, inchaço da boca e da garganta. Apesar de poderem consumir centeio e cevada, aqueles que apresentam alergia ao trigo precisam retirar esse grão rico em glúten da alimentação.
  • Sensibilidade ao glúten não celíaca. Aqui não existe uma reação alérgica nem autoimune e o diagnóstico é dado por exclusão. Muito ainda precisa ser estudado sobre essa condição, mas se percebe que o indivíduo apresenta sintomas gastrointestinais semelhantes aos da Doenças Celíaca e eles também cessam ao retirar o glúten da alimentação.

Nessas três condições raras, quando diagnosticadas por um profissional de saúde, é imprescindível a restrição alimentar do glúten. Mas quanto às pessoas que não tem essas dificuldades, que vamos chamar de "saudáveis" nesse artigo, e que resolvem "cortar" o glúten da alimentação? Essa atitude realmente contribui para a saúde?

Alimentação sem glúten melhora sintomas gastrointestinais?

Pela necessidade de diferenciar pessoas que se beneficiam de uma alimentação sem glúten daquelas que não, estudiosos do Reino Unido conduziram uma pesquisa para determinar como o glúten afeta a saúde de pessoas saudáveis.

No total, 28 voluntários participaram da pesquisa, dos quais 21 eram mulheres com idade média de 38 anos, todos submetidos a testes sorológicos para detectar Doença Celíaca.

Os pesquisados foram divididos em dois grupos e cada um deles participou de duas sessões, sendo convidados a terem uma alimentação sem glúten por duas semanas, com o acompanhamento de um profissional nutricionista que deu informações e recomendações sobre esse tipo de alimentação. Também deveriam completar uma escala de classificação de sintomas gastrointestinais para avaliar dor abdominal, refluxo, indigestão, diarreia e constipação.

Em seguida, os pesquisadores distribuíram saquinhos com farinha rotulados em A e B e solicitaram aos voluntários para adicionar o conteúdo do saquinho a duas refeições do seu dia. Um dos rótulos continha 14 g de glúten e o outro era uma mistura de farinhas sem glúten (como arroz, batata, tapioca, milho e trigo sarraceno, que apesar do nome, não contém glúten). O estudo foi duplo-cego randomizado, ou seja, as pessoas nem os pesquisadores sabiam o que estavam comendo. Ambos os grupos continuaram a alimentação sem glúten recomendada durante o período de duas semanas e completaram a escala novamente ao final do estudo.

De acordo com os autores, o escores médios de sintomas diminuíram no grupo que consumiu glúten (sugerindo melhora sintomática), apenas um participante desse grupo relatou uma piora de alguns sintomas sem melhora em outros. Porém, não houve diferença significativa entre os grupos no que diz respeito às mudanças nos sintomas gastrointestinais. Apenas o escore de diarréia diminuiu significativamente no grupo do glúten, mas os pesquisadores consideram esse resultado atípico.

Dessa forma, a pesquisa mostra que o glúten não provoca sintomas gastrointestinais em pessoas saudáveis, apoiando a visão de que essa substância não é maléfica para quem não apresenta suscetibilidades fisiológicas, no caso, a maioria da população. Os autores alertam: uma alimentação livre de glúten não é considerada mais saudável e deve ser desencorajada pelas pessoas sem problemas de saúde relacionados ao glúten. Ou seja, se você não apresenta doença celíaca, alergia ao trigo ou sensibilidade ao glúten não celíaca, pode comer glúten sem medo!

Uma ressalva importante é que, durante o recrutamento do estudo, os cientistas identificaram e excluíram duas pessoas que foram encontradas com possível Doença Celíaca nos testes iniciais. Assim, apesar do aumento da conscientização sobre essa doença e o glúten, ainda existem pessoas não diagnosticadas e nesses casos, o glúten provavelmente causa danos. Por isso, se você frequentemente apresenta sintomas gastrointestinais, busque ajuda de profissionais especializados.

Menos glúten, mais ultraprocessados

É necessário traçar uma linha clara entre aqueles que se beneficiam e aqueles que não se beneficiam de uma alimentação sem glúten.

Por um lado, a crença de que o glúten faz mal gerou um mercado lucrativo de alimentos "gluten-free", importantíssimo para uma minoria que necessita restringir essa substância da sua alimentação, mas desnecessário para aqueles que não apresentam nenhuma condição de saúde que justifique essa restrição.

Por outro lado, o aumento da popularidade da alimentação sem glúten também incentivou a crença oposta, de que é uma dieta da moda. Isso pode trazer problemas para as pessoas que sofrem com a Doença Celíaca, pois muitas vezes não são levadas a sério ao comer fora de casa e enfrentam atitudes desdenhosas. É preciso entender as dificuldades dessas pessoas. Para quem é "saudável", comer um prato engrossado com um pouco de farinha de trigo não é um problema, mas para quem tem alguma das três condições de saúde citadas no início desse artigo, sim. Entendo as dificuldades que estas pessoas passam, uma vez que existe no mercado uma grande oferta de alimentos com glúten, inclusive escondido em produtos que não deveriam contê-lo.

Boa parte dos produtos alimentícios que originalmente apresentam glúten, como bolos, pães e massas, ao apresentarem uma versão sem glúten, geralmente precisam adicionar outros ingredientes e aditivos alimentares que tornam o alimento mais próximo da textura e elasticidade convencional. Para quem busca melhorar a alimentação, a opção por esses alimentos não é a mais adequada, eles são ultraprocessados e não deveriam ser a base da nossa alimentação.

Se você é "saudável" e deseja consumir bolos, pães ou massas, permita-se comer esses alimentos com prazer e sem culpa. Vejo muito em meu consultório pacientes que tiraram o glúten da alimentação sem apresentarem nenhuma condição que justifique a restrição. Também muitos não entendem muito bem quais são os alimentos sem glúten e, com isso, passam a comprar muitos industrializados "sem glúten" para garantir e assim acabam consumindo mais alimentos ultraprocessados.

De qualquer modo, o melhor é buscar uma alimentação baseada em alimentos in natura (ou seja, alimentos verdadeiros) e o mais variada possível, que contemple todos os grupos alimentares: feijões, carnes, ovos, leite, frutas, verduras, legumes, raízes, tubérculos, oleaginosas e cereais. E lembre-se, sem restrições alimentares desnecessárias, alimentação sem trigo, cevada e centeio apenas para aqueles que sofrem com problemas relacionados ao consumo de glúten.

Gostaria de lembrá-los também que a alimentação brasileira tradicional é riquíssima em alimentos sem glúten, como: feijão com arroz, farofa, pão de queijo, tapioca, milho, etc… e planejando uma alimentação equilibrada é possível ter uma vida saudável e tranquila.

Como sempre a melhor opção é ir para a cozinha e testar receitas para compartilhar com os familiares e amigos. Na verdade, isso vale para todos, pois cozinhar é uma forma de sermos mais saudáveis, já que conhecemos melhor os ingredientes e temos mais consciência do que estamos consumindo.

Bon appétit!

Sophie Deram

Sobre a autora

Sophie Deram é uma nutricionista franco-brasileira, autora do best-seller “O Peso das Dietas”, palestrante, pesquisadora e doutora pela Faculdade de Medicina da USP (Universidade de São Paulo) no departamento de endocrinologia. Defende a importância do prazer de comer para a saúde e a ideia de comer melhor e não menos. Sophie não acredita nas dietas restritivas e no “terrorismo nutricional”. Desenvolve programas online para transformar a relação das pessoas com comida e ensina profissionais de saúde sobre nutrição que alia ciência e consciência.Leia mais no site da Sophie Deram: https://www.sophiederam.com/br/

Sobre o blog

Dicas, reflexões e estudos sobre a relação do nosso corpo com a comida, com foco em alcançar uma relação tranquila com os alimentos e, assim, obter um peso saudável. Esse é um espaço que passa longe dos modismos alimentares. Aqui promoveremos mudanças de hábitos que vão te ajudar a viver melhor. Acredito que o ser humano se nutre de alimentos e sentimentos.