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Entenda mais sobre os conflito de interesses em pesquisas de nutrição

Sophie Deram

08/07/2020 04h00

Crédito: iStock

A ideia de escrever algo aqui sobre conflito de interesses em pesquisas de nutrição me ocorreu a partir do artigo que publiquei semana passada sobre a metanálise "Meat and mental health: a systematic review of meat abstention and depression, anxiety, and related phenomena" que mostra uma ligação entre vegetarianismo e saúde mental.

Tenho bastante cuidado ao ler os artigos científicos. Esse, em especial, apesar de declarar não haver conflito de interesses, foi parcialmente financiado por um programa de marketing e pesquisa desenvolvido para aumentar a demanda por carne bovina. Isso mostra claramente que outros interesses podem ter interferido nos resultados da pesquisa.

Essa publicação não é uma exceção. Muitas pesquisas de alimentação e nutrição são financiadas por empresas, visando o próprio lucro. Essa questão não é simples, envolve diversas questões éticas e políticas, e por isso mesmo considero que precisamos conversar sobre os conflito de interesses em pesquisas de nutrição.

Você sabe o que são conflito de interesses?

Conflito de interesses na pesquisa referem-se a situações em que o pesquisador está envolvido com interesses secundários (financeiros, comerciais, políticos) que podem influenciar os resultados da pesquisa.

Por esse motivo, as revistas científicas exigem que os autores de artigos divulguem a existência ou não de conflito de interesses, como também dê informações sobre o financiamento da pesquisa.

Evitar os conflito de interesses em pesquisas de nutrição e na ciência em geral é algo muito complexo, pois a ciência não é neutra. Ela é feita por seres humanos que têm interesses, intenções e ambições, e que é financiada por governos e empresas.

Os conflitos de interesses são comuns na área da Nutrição. Vale lembrar que os alimentos representam um enorme mercado, por isso é lógico que a indústria de alimentos deseje promover seus produtos e influenciar as pesquisas científicas, além da formação de opinião dos consumidores.

Temos diversos exemplos nos quais o lucro da indústria fala mais alto nas pesquisas de nutrição. Ano passado, por exemplo, a OMS (Organização Mundial da Saúde) desistiu de incentivar uma campanha que incentiva dietas com base em plantas, pois questionou-se as evidências científicas desse tipo de dieta e os interesses financeiros das empresas fundadoras.

A Coca-Cola patrocinou um estudo que concluiu que o baixo nível de atividade física é responsável pela obesidade, e não uma alimentação não-saudável. Vale lembrar que a pesquisa não procurou relação entre o consumo de bebidas açucaradas e o excesso de peso. E a SBAN (Sociedade Brasileira de Alimentação e Nutrição) já foi alvo de diversas críticas e movimentos por ter essa empresa como uma de suas patrocinadoras.

Por isso, é tão importante olhar para o financiamento da pesquisa. Porém, também não podemos cair na armadilha de achar que todas as pesquisas financiadas por empresas geram informações manipuladas.

Na verdade, é possível que promovam benefícios à população em geral. Graças a muitos financiamentos privados, ocorreram o desenvolvimento de novos medicamentos, tecnologias médicas para a detecção e tratamento de doenças, descoberta de funções dos nutrientes e sua presença em determinados alimentos, etc.

As empresas também têm perguntas de pesquisas e questões sobre os potenciais efeitos de seus produtos na saúde. Mas essas questões, sem dúvida alguma, podem ser melhor respondidas por cientistas que não tenham relações de dependência com a indústria. Nesse caso, a questão principal é encontrar uma maneira prática de evitar que interesses comerciais e financeiros interfiram nas pesquisas.

Para isso é importantíssimo pensar sobre os impasses éticos envolvidos na ciência e tentar responder a questões como: quais setores da sociedade servem a uma determinada pesquisa específica? Quem deve se beneficiar com essas descobertas? Quais poderiam ser os usos indevidos dessas descobertas?

O conflito de interesses não acontece apenas com interferência da indústria

Conflitos de interesses em pesquisas de nutrição que envolvem a indústria, sem dúvida, são muito presentes e problemáticos. No entanto, não são os únicos. Aqueles que acontecem por interferência de aspectos individuais dos pesquisadores também merecem atenção.

Um dos aspectos é a preferência por determinadas teorias que podem afetar um campo de estudo. É quase inevitável que um pesquisador forme uma opinião e que defenda seu trabalho, suas próprias descobertas e as teorias que ele adotou como verdadeiras.

Quanto aos cientistas da nutrição, há um desafio adicional. Todos os dias eles devem fazer inúmeras escolhas sobre o que comer, sem permitir que afetem suas pesquisas, ao mesmo tempo são influenciados por normas alimentares da sua família e educação, cultura ou religião.

Pense comigo para entender melhor sobre o que estou falando: você acha que um pesquisador adepto de alguma religião poderia concluir com facilidade que determinada forma de se alimentar atrelada à sua religiosidade seja prejudicial à saúde?

Os pesquisadores são humanos e não é possível separar completamente quem são profissionalmente das outras instâncias da vida. Mas é importante que divulguem seu trabalho, bem como suas preferências alimentares, pois essas informações podem ser relevantes para a compreensão das publicações científicas.

Por exemplo, os leitores devem saber se um autor é fortemente aderente a uma determinada dieta ou que segue e acredita em determina linha da Nutrição.

A divulgação de informações desse tipo contribui para que se entenda de onde o pesquisador está falando e ajuda a contextualizar e a identificar comprometimentos da informação com base em opiniões e questões pessoais. A disponibilidade dessas divulgações permitiria que os leitores fossem mais céticos ou mais inspirados, dependendo de como veem as evidências e argumentos apresentados.

A ciência não é neutra, mas precisa ser ética e transparente

Ou seja, ao lidar com conflito de interesses em pesquisas de nutrição uma das coisas mais importantes é que existam reflexões éticas e transparência, o que se relaciona com a importância do direito à informação e a ter subsídios para interpretar e identificar vieses nas pesquisas.

A visibilidade desse conflito de interesses, seja o patrocínio das empresas ou as questões individuais dos pesquisadores, é essencial para o avanço justo das pesquisas em Nutrição.

É de extrema importância que essas informações sobre os pesquisadores e sobre financiamento da pesquisa possam ser encontradas nos artigos de forma clara e exposta com destaque. E a divulgação disso pela mídia pode ajudar o público a desenvolver uma avaliação mais crítica sobre os estudos.

Para isso, é importante que os pesquisadores informem com clareza a existência de conflito de interesses (ter parentes próximos com interesses financeiros nos resultados da pesquisa, trabalhar em uma organização com interesse financeiro, receber apoio, doações ou bolsas de empresas ou organizações), o que também se aplica a revisores e editores dos periódicos científicos que podem estar ligados aos autores e afetar a imparcialidade da revisão.

Os profissionais e pesquisadores de saúde devem estar atentos a esses conflito de interesses, inclusive no que diz respeito às suas próprias ações, e discutir essas questões eticamente na busca por uma nutrição com ciência e consciência.

Outra responsabilidade nossa é educar as pessoas a não acreditarem em tudo que leem sobre alimentação, ajudando-as a desenvolver o senso crítico e o discernimento para interpretar as informações. Só assim, com ética, transparência e qualidade, é que poderemos ter uma ciência com menos conflito de interesses e mais justa.

Bon appétit!

Sophie

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Sobre a autora

Sophie Deram é uma nutricionista franco-brasileira, autora do best-seller “O Peso das Dietas”, palestrante, pesquisadora e doutora pela Faculdade de Medicina da USP (Universidade de São Paulo) no departamento de endocrinologia. Defende a importância do prazer de comer para a saúde e a ideia de comer melhor e não menos. Sophie não acredita nas dietas restritivas e no “terrorismo nutricional”. Desenvolve programas online para transformar a relação das pessoas com comida e ensina profissionais de saúde sobre nutrição que alia ciência e consciência.Leia mais no site da Sophie Deram: https://www.sophiederam.com/br/

Sobre o blog

Dicas, reflexões e estudos sobre a relação do nosso corpo com a comida, com foco em alcançar uma relação tranquila com os alimentos e, assim, obter um peso saudável. Esse é um espaço que passa longe dos modismos alimentares. Aqui promoveremos mudanças de hábitos que vão te ajudar a viver melhor. Acredito que o ser humano se nutre de alimentos e sentimentos.